quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Conta-se aqui a história contemporânea do Rio da Cal, que nasce próximo das Caldas da Rainha e desagua na Lagoa de Óbidos. Poluído e muito degradado na maior parte do seu curso, nele ainda encontramos troços de esperança que urge conservar.

Era uma vez um rio!

Chamaram-lhe da Cal mas também tem outros nomes, menos simpáticos e alusivos da muita poluição que ele transporta. Como se sabe os rios nem sempre nascem num único ponto e o Cal é um desses casos: tem dois braços bem conhecidos da população local que lhes chamam respectivamente, “Rio do Mijo” e “Rio da Merda”. Os que preferem um nome menos agressivo, chamam-lhe simplesmente “Rio Sujo”. Um vem da zona de Gaeiras, localidade imediatamente a Sul de Caldas da Rainha e o seu afluente igualmente sujo vem do Belo Ver, na zona Este da mesma cidade.

No Belo Ver o rio ainda incipiente, encaixa numa zona de terrenos principalmente agricultados, vindo de uma pequena mancha de arvoredo que ocupa a colina onde ele nasce. É um riozito triste e pobre, onde a vegetação riparia foi arrancada e substituída por terrenos lavrados, castanhos e despidos. Tem uma pequena represa e a sua água é desviada para um reservatório. No entanto, a água é ainda límpida e aparece aqui e ali alguma vegetação que teima em ressurgir depois dos ataques da
enxada.

 saída de Caldas da Rainha e perto do edifício da EDP e da Escola de Sargentos do Exército, podemos encontrá-lo vindo das Gaeiras, já bastante sujo, embora mantenha alguma da vegetação riparia que o deveria caracterizar em todo o seu percurso. Mas como esperar outra coisa se está já em plena área urbana?

Continuando a seguir o seu percurso na cidade de Caldas da Rainha, vamos encontrar o nosso rio, ainda bebé e acabado de nascer, na traseira do antigo Hotel Lisbonense. Aqui o que temos é o braço que vem do Belo Ver; a água ainda límpida e o fundo de areia branca, deixam perceber que a perniciosa influência do homem, que está propositadamente escrito com H minúsculo por não merecer a maiúscula, ainda não se faz sentir muito e, não fez desde o Belo Ver. A vegetação riparia está no entanto, reduzida ao caniçal, o que mostra já que pelo menos as margens, perderam grande parte da sua função protectora. Nota-se aqui uma curiosidade relacionada com o termalismo em Caldas da Rainha e arredores: a água cheira a enxofre e liberta vapor, denotando que há no seu percurso desde o Belo Ver, alguma forma de contacto com as águas termais quentes e sulfurosas, que são exploradas no Hospital Termal a cerca de 500 m.
O nosso “Rio Sujo” prossegue no seu percurso urbano e, vamos encontrá-lo de novo, junto ao Hipermercado Intermarché de Caldas da Rainha, agora já exalando um valente cheiro a esgoto, canalizado, sem qualquer espécie de vegetação riparia e com uma água espumosa e turva. Um pouco à frente, junto à ETAR das Águas Santas, que trata os efluentes domésticos e industriais equiparados de Caldas da Rainha, com tratamento secundário, desde o Verão de 2004, podemos encontrar o Cal com águas ainda mais fedorentas, turvas e espumosas. Desde as Caldas da Rainha até ao Braço da Barrosa na Lagoa de Óbidos, onde o Rio da Cal desagua, a vegetação riparia resume-se a uma enorme extensão de caniçal, única espécie vegetal que parece conseguir sobreviver às condições extremamente adversas daquelas águas, tão poluídas.
À entrada do Braço da Barrosa na Lagoa de Óbidos, a influência do Cal é evidente: fundos de meio metro de altura devido ao assoreamento extremo, lodos carregados de matéria orgânica em putrefacção que cria bolsas de metano no seu interior, algas infestantes características de zonas poluídas e águas turvas e mal cheirosas. Não obstante, este Braço e a zona entre braços que lhe está adjacente, continuam a corresponder às zonas das margens da Lagoa de Óbidos com maior nº de espécies limícolas, habitats importantes e biodiversidade em geral. Imaginemos então como seria esta área, se o Cal fosse um rio despoluído e a sua vegetação riparia estivesse no auge da sua possível exuberância….Mas por incrível que pareça face ao cenário até agora descrito, existe no Cal, uma área em plena cidade de Caldas da Rainha, que corresponde ainda ao que gostaríamos de ver em todo o seu percurso: trata-se de uma zona que pertenceu em tempos a uma grande quinta, Quinta da Boneca, que permanece ainda quase intacta e, onde o Rio da Cal serpenteia por entre diversos tipos vegetais, nomeadamente, fetos, Equisetum, hepáticas, musgos, erva da fortuna, gilbardeira, heras, jarros selvagens, carvalhos, loureiros e pitosporos, estando representados os 3 estratos (herbáceo, arbustivo e arbóreo) e, patenteando uma biodiversidade invejável, para uma zona totalmente encaixada na cidade. Embora coexistam neste espaço, algumas espécies exóticas infestantes, a riqueza em autóctones é suficiente para se perceber que se trata de uma área ainda bastante preservada e que mantém bastantes características pristinas.
Em, relação ao Equisetum, (erva-pinheira, rabo de cavalo ou cavalinha) que também é visível perto da nascente, embora em menor quantidade, pertence a um grupo que de acordo com alguns autores descende das Psilofitineas (plantas terrestres primitivas datadas de há cerca de 400 M. a.) e evoluiu ao mesmo tempo que as Licopodineas (Cristo e Galhardo, 1970), estando na base das primeiras plantas vasculares sem semente (Silva et al., 2001). É uma planta típica de ambientes húmidos e pantanosos, tendo colonizado estratos Devónicos (há cerca de 350 milhões de anos), razão pela qual podem ser considerados relíquias ou fósseis vivos.

Chegámos ao fim deste Rio que ora é Sujo, ora é Cal, ora até poderia ser um Rio Paraíso, se o pequeno troço da Quinta da Boneca se estendesse a todo o seu percurso. Para isso bastava cortar todas as ligações de esgotos clandestinos que a ele vão dar, repovoar as suas águas e margens com as espécies autóctones retirando as infestantes, proteger as suas margens numa faixa suficientemente alargada para permitir a retenção de poluentes pela vegetação riparia, acabar de vez com a colocação dos efluentes da ETAR no rio e, sensibilizar a população em geral para a necessidade de não contribuir para a poluição desta linha de água e em vez disso se esforçar por conseguir o inverso.
Quanto ao troço de rio na Quinta da Boneca, é urgente que este seja enquadrado num estatuto de conservação, que permita a sua preservação e melhoria. É necessário que este troço de rio não seja devassado nem por pessoas nem por construções, de forma a evitar que se venha a transformar em mais um deserto de cimento e poluição, ou mais um espaço verde ocupado por actividades ligadas ao tráfico de droga e prostituição.

A NOSTRUM pretende fazer aqui uma tomada de posição e uma disponibilização total, no sentido de se avançar para uma solução prática que ajude a despoluir este rio e a proteger de forma mais eficaz o troço da Quinta da Boneca.

 

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